28 março 2023

O jogo, uma dádiva de Deus

Texto de Rui Silva apresentado ao PNED - Concurso Literário «A Ética na Vida e no Desporto»

Nos finais de 1913 John era um jovem de Manchester que sonhava ser jogador  profissional de futebol. A sua realidade era, porém, bem diferente. Trabalhava horas  a fio numa das muitas fábricas têxteis da sua região. A hora de entrada era sempre a  mesma: 5h da manhã. Já a hora de saída... variava de acordo com a vontade e as  necessidades do patrão. Nos fins-de-semana tocava, ainda que de forma efémera,  no seu sonho. Era quando jogava no campeonato amador mais anónimo. Apesar de  tudo era feliz... As derrotas e as vitórias eram sempre comemoradas. Festejava-se  sempre da mesma forma e no mesmo local: o pub mais frequentado da cidade.  

De repente tudo se desmoronou.... John é convocado pelo exército inglês para a  combater na I Guerra Mundial. Continuou, deste forma, a lutar pelo mesmo desígnio:  a vitória coletiva. Tudo resto era diferente. A sua vida e os seus sonhos pouco  interessavam... o campo, que era da bola, deixou de ter linhas. A bola deu lugar às  armas e o alvo passou a ser o “jogador” adversário em vez da sua baliza. O prazer  de jogar deu lugar ao desejo de sobreviver. O período que se seguiu foi penoso. Dia  após dia, vários dos seus colegas foram expulsos do jogo da vida. O facto de não  existir um árbitro que assegurasse o verdadeiro espírito do jogo e de os dirigentes  políticos estarem sempre a recompor as suas equipas com novos elementos impediu que este fosse dado por terminado logo às primeiras entradas fora da lei. O jogo  parecia eterno...  

A dado momento uma pequena pausa. Nas modalidades de pavilhão estes  momentos são definidos como “Pausa Técnica” ou “Tempo Morto”. Para John foi o  tempo para perceber que ele e os restantes jogadores estavam vivos, bem vivos.  Aproveitando as “Tréguas de Natal” que haviam sido decretadas, John tirou dos seus 

pertences a sua melhor amiga: a bola. Após sair da trincheira deu, a medo, os seus  primeiros toques na companhia dos colegas de equipa. O campo, improvisado, foi  repentinamente coberto de panos brancos. O que parecia ser a claque organizada  dos “Ultra Peace” era apenas um conjunto de jovens alemães a demonstrar que  partilhavam os mesmos ideais: a paixão pelo jogo e pela vida. John fora, por instantes,  transportado para um dos seus saudosos fins-de-semana. De repente deixara de lutar  “contra” para “jogar” com os alemães. É este o verdadeiro espírito do jogo...


Palavras&Cª. Abril de 2024